M&C

Um baú aberto a insuflar o momento.
Um sonho solto a trocar-se de noite.
Preso, ainda que ao de leve, ao instinto
castrador de conservação
O mito a esconder a ousadia do respirar espontâneo.
Desejosa de sonhar-te e acordar de olhos fechados,
para que não te fosses.
Urdindo estratagemas e desfiando a arrogância do desejo.
Como bilros a cruzarem-se a cada gesto imaginado,
invento caminhos depondo a minha vida em ti.

"You became the light on the dark side of me...
...my power, my pleasure, my pain...
...the more that I get from you the stranger is feels..."


Dimensões

As conversas são como as cerejas mas raramente dão sumo (ainda estou à espera de um kilo delas ...que me prometeram...). Dietético ou calórico, com mais ou menos polpa, de frutas ou legumes, virtual ou fisíco. O liquidificador neuronal girou, seguindo a gravidade a cada elemento. E o abstrato tomou forma, num sumo de cereja a 4 mãos.

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                                                        Foto : Mika

Alto e magro, crescera sem esqueleto.
Viu-o e desencantou-lhe os ossos e ele conhecendo-se novo chamou-lhe princesa.
Todos os dias roía-lhe os ossos que lhe inventara de forma a convencer-se que eles existiam…
Soubera em tempos pô-los em ordem uns atrás dos outros.
Sentir-lhes as formas, torná-los reais e deixá-los crescer.
Como se tivessem sido sempre parte desse seu tempo, onde a carne se faz vestido, onde o sangue latejante escreve a vida.
Outro Sol descobre-se por detrás da colina imperfeita.
Os sons de gente na cidade a acordar, no zumbido de outro e outro dia.
Ziguezagues, zumbidos, colmeias sem mel, paralelepipedos de betão sem janelas…, precisava de inalar o Azul, cobrir-se com o som do mar, rasgar o peso de todos os Tic-Taques que o sufocavam.
De olhos em bicos-de-pé encarou o SOL…
Cada vez mais a custo, lembrava outras tardes em que o sopro do vento lhe cortava o olhar.
Secava-lhe a boca, na memória sem nexo do adormecer devagar.
Os olhos que teimavam fechar-se e a cidade ali a recomeçar, depois de outra noite no fumo de medo.
Haveria de conseguir, nem que lhe custasse o preço de todo o passado.
O preço do passado…o preço do passado…disco riscado martelando, esculpindo a dor.
Furou os tímpanos, ensurdeceu os fantasmas e gargalhou tão estridentemente que todos os seus vidros se configuraram janelas…
Impotente, oásis do grito, subiu a custo outro lanço de escadas com o soalho por testemunha. Paredes cinzentas pelo pisar de pés, apoio de mãos, conversas baixinho, putos e bolas, cuscuvilhices de vizinhança, amantes sem morada.
A chave que desafiava a ranhura, derradeiro esforço antes da paz do chegar. Pesadelo de sufoco que agitava dois mundos, suor que brotava dos poros, no frio de Novembro.
Deu por si a descer as escadas. Cada passo a dizer não ao cinzento das paredes, não a todos os pés que desconheciam a sua história, não a todos os Novembros que lhe usurpavam e gelavam o Querer.
Viu-se a pisar a rua e fez-se Agosto. Centrou-se em cada passo e descobriu o amanhecer límpido e prazeiroso que lhe nascia das entranhas. Jogou a mão ao bolso e desconheceu: o jogo de chaves, as portas, as fechaduras, que lhe havia aprisionado o Calor.
Correu direito a todos os lados, desejou-se no verde fresco de erva molhada, na sombra de um cipreste…e correu… E reviu todo o sonho enquanto corria, e deixou a vontade levá-lo por onde o pesadelo não quis. E correu…correu ainda mais e mais rápido, para o mais longe que a imaginação inventou. E deixou para trás os tropeções da dúvida, os rituais de iniciático, as palavras pesadas de ordens impostas, os triunfos e as derrotas de quem não era ele, os compassos de músicas que nunca marcou… e no final mais longínquo de todos os fins…aquele que fica para lá da distância segura…parou.
Olhou-se parado, sem pés, sem pernas, sem canga.
Sentiu-se veloz como jamais se conhecera.
Fez-se roteiro, descobriu-se viagem.
Colou todos os favos adormecidos.
E partiu…………inteiro………com gosto de mel…….inalando perfumes inebriantes………

Estória a duas penas por Mika Akim e Susana Venenno



A chuva caía com pressa, naquela estação de província de luzes fluorescentes amareladas pelo tempo. Tinham-se habituado a partilhar nos últimos dias as pontas do mesmo banco roçado e comprido até chegar o das 18,05h, com mais ou menos gente sem lugar marcado, naqueles finais de tarde em Primavera adiada.
Ele lia um diário, ela um livro, outros liam gestos nos olhares desmaiados de ficar por ali o mínimo tempo possível.
Esticou o pulso, viu as horas e fechou o diário com as chaves que não tinha. Ergueu-se em direcção ao horizonte, que trazia ao fundo as luzes que iluminam rostos abandonados pelo final do dia, levando-os a qualquer porto.
Ela sem se mexer segui-o com uns olhos de quem chora o que não vive. Não apreciava a ilusão que vinha dos perfumes dos homens mas deu por si a inspirar com vontade aquele... de que surpreendentemente gostou; talvez porque se misturasse com o cheiro da terra molhada de cansaço. Sim, foi decididamente isso que gostou daquele cheiro que inalou.
Lembrou-lhe aquilo que nunca se esquece.
Deixou-se absorver tanto que quase precisou de correr para entrar na última carruagem.
Disputavam-se lugares em busca de um descanso curto até ao destino desejado. Ela via-o avançar serenamente, até ao fundo da composição, quase lhe ouvindo os passos naqueles sapatos sempre engraxados. Sentou-se num banco perto do corredor para poder vê-lo ao fundo no lado oposto ao seu. O tronco direito, as mãos cruzadas sobre a pasta encerada e aquele fato sem mostrar um vinco de outro dia. Reparou que ele tinha recostado a cabeça e fechado os olhos.
- Não se importa dá-me um jeitinho para eu passar?!
Invadida por uma coragem que não conhecia deixou-se roçar por restos de gente que, pelo corredor, se lamentava do infortúnio de chegar tarde demais ao sossego.
- Com licença... Com licença...
Em pé, segura no seu próprio equilibrio, plantou-se mesmo defronte dele. Apetecia-lhe o seu cheiro. O diário dormia entalado entre a sua perna e a de outro passageiro.
"Humm" Este perfume! É-me tão familiar. Donde é que eu conheço este perfume?" - perguntava-se num suspiro que lhe cerrava os olhos.
Esqueceu-se que trazia consigo todos os outros 4 sentidos, e concentrou-se apenas no olfacto.
Um dos lugares do banco da frente evaporou-se da passageira que sairia na próxima. Ela sentou-se e fixou o olhar no rosto dele, embalado pelo movimento compassado do comboio a sugerir um suave não.
Sentiu-se deslumbrada com aquela fonte de fragrância a invadir-lhe agora sim todos os sentidos...como seria a cor de um cheiro? qual o gosto de um olhar?
Quando voltou a si os outros passageiros tinham saído e só restava ele continuando o seu dormitar ali tão perto, que quase lhe podia sentir a respiração.
- Querido?! - uma mulher aproximou-se e despertou-o com palmadinhas no ombro. Ele abriu os olhos vermelhos e olhou-a num silêncio antigo. Depois, sorriu-lhe:
- Voltaste!
O casal feliz, desapareceu abraçado na paragem seguinte.
A expressão dela, ao vê-los sair, morreu ali... com a vida daquele homem aninhada às suas mãos, prontas a folhearem um passado que lhe pertencia, apenas, na imaginação que se cola a um perfume sem nome. Como se de um recém-nascido se tratasse, pegou com cuidado no diário abandonado e deixou que a terra do nunca, a beijasse para sempre.



Mika Akim & Susana Venenno
09/04/2010
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