Estória a duas penas por Mika Akim e Susana Venenno



A chuva caía com pressa, naquela estação de província de luzes fluorescentes amareladas pelo tempo. Tinham-se habituado a partilhar nos últimos dias as pontas do mesmo banco roçado e comprido até chegar o das 18,05h, com mais ou menos gente sem lugar marcado, naqueles finais de tarde em Primavera adiada.
Ele lia um diário, ela um livro, outros liam gestos nos olhares desmaiados de ficar por ali o mínimo tempo possível.
Esticou o pulso, viu as horas e fechou o diário com as chaves que não tinha. Ergueu-se em direcção ao horizonte, que trazia ao fundo as luzes que iluminam rostos abandonados pelo final do dia, levando-os a qualquer porto.
Ela sem se mexer segui-o com uns olhos de quem chora o que não vive. Não apreciava a ilusão que vinha dos perfumes dos homens mas deu por si a inspirar com vontade aquele... de que surpreendentemente gostou; talvez porque se misturasse com o cheiro da terra molhada de cansaço. Sim, foi decididamente isso que gostou daquele cheiro que inalou.
Lembrou-lhe aquilo que nunca se esquece.
Deixou-se absorver tanto que quase precisou de correr para entrar na última carruagem.
Disputavam-se lugares em busca de um descanso curto até ao destino desejado. Ela via-o avançar serenamente, até ao fundo da composição, quase lhe ouvindo os passos naqueles sapatos sempre engraxados. Sentou-se num banco perto do corredor para poder vê-lo ao fundo no lado oposto ao seu. O tronco direito, as mãos cruzadas sobre a pasta encerada e aquele fato sem mostrar um vinco de outro dia. Reparou que ele tinha recostado a cabeça e fechado os olhos.
- Não se importa dá-me um jeitinho para eu passar?!
Invadida por uma coragem que não conhecia deixou-se roçar por restos de gente que, pelo corredor, se lamentava do infortúnio de chegar tarde demais ao sossego.
- Com licença... Com licença...
Em pé, segura no seu próprio equilibrio, plantou-se mesmo defronte dele. Apetecia-lhe o seu cheiro. O diário dormia entalado entre a sua perna e a de outro passageiro.
"Humm" Este perfume! É-me tão familiar. Donde é que eu conheço este perfume?" - perguntava-se num suspiro que lhe cerrava os olhos.
Esqueceu-se que trazia consigo todos os outros 4 sentidos, e concentrou-se apenas no olfacto.
Um dos lugares do banco da frente evaporou-se da passageira que sairia na próxima. Ela sentou-se e fixou o olhar no rosto dele, embalado pelo movimento compassado do comboio a sugerir um suave não.
Sentiu-se deslumbrada com aquela fonte de fragrância a invadir-lhe agora sim todos os sentidos...como seria a cor de um cheiro? qual o gosto de um olhar?
Quando voltou a si os outros passageiros tinham saído e só restava ele continuando o seu dormitar ali tão perto, que quase lhe podia sentir a respiração.
- Querido?! - uma mulher aproximou-se e despertou-o com palmadinhas no ombro. Ele abriu os olhos vermelhos e olhou-a num silêncio antigo. Depois, sorriu-lhe:
- Voltaste!
O casal feliz, desapareceu abraçado na paragem seguinte.
A expressão dela, ao vê-los sair, morreu ali... com a vida daquele homem aninhada às suas mãos, prontas a folhearem um passado que lhe pertencia, apenas, na imaginação que se cola a um perfume sem nome. Como se de um recém-nascido se tratasse, pegou com cuidado no diário abandonado e deixou que a terra do nunca, a beijasse para sempre.



Mika Akim & Susana Venenno
09/04/2010
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nos termos da Lei 50/2004, de 24 de Agosto

1 comentários:

Eu disse...

...ao ler este dueto de penas, fui assaltada por pensamento" Não metas a pena em penas alheias"...:-)
Mas porque gosto não de me meter por aí, mas sim deixar palavras apeteceu-me relembrar estória que guardei em diário de folhas alvas, nunca escritas, porque os registos guardava-os bem guardadinhos a sete chaves, num lugar onde o tempo se encarregou de lhe deixar abertos sulcos profundos de batidas não dadas em noites queridas de luas de amor
Perseguidora de cheiros, revi-me aqui...
Tudo na vida ficou associado a um cheiro...recordo pelo olfacto o cheiro da despensa onde a minha avó guardava a fruta a ser comida fora da estação, hoje tem cheiro a afectos, a elos, à segurança da minha meninice...ela guardava aí as romãs, que ternamente me descascava, como sinto o cheiro dos bagos vermelhos colocados em prato de cavalinho, sobre linho bordado pelas suas mãos pequeninas, dizem ser as minhas, semelhantes às suas...
Recordo-lhe o toque, a forma como me acariciava os cabelos e neles depositava, em ligeiro roçar, beijos meio envergonhados, sim, porque dar afecto era coisa de fraqueza, era cheiro a debilidade, era cheiro a não dar-se ao respeito, a educação devia ser rígida, não queriam gente fraca, porque demonstração de sentires era demodé...
Anos passados...ela, a avó ,porque era doce, mulher de muito sentir, deixou-me o legado da hereditariedade entranhada, gravada, de sentir como ela...
...é inevitável, a genética tem uma força espantosa,...
...já deixei esse mesmo legado à filha que me adoça a existência...a filha que para além dos cheiros ainda adquiriu uma outra força de sentir, estranhamente comia algo e dizia-me...mamã sabe a branco!!!...mamã sabe a azul!!!
Inicialmente pensei ser mãe duma extraterrestrezinha , alguma infidelidade minha dos meus voos sonhados com seres duma outra dimensão, brincavam os pensamentos na minha cabeça!!!!...sei hoje o cheiro da ilusão, o cheiro do amor, o cheiro da amizade, o cheiro da pobreza que assola tantos, o cheiro do desrespeito terrível que uns têm por outros...
Há cheiros que sempre guardarei, outros miserabilistas, desprezíveis, tento combatê-los na dádiva da ajuda, no cheiro da comida necessitada, da roupa com sabor a branco, a azul que vesti a quem dela precisava e revia a minha pequenina, e não mais esquecerei cheiros idos, não desaparecidos!!!!
...não no comboio, sim na estação da vida, onde o tempo me trouxe, quero contar-vos o cheiro de alguém que passou a fazer parte de mim...
As pessoas não nos pertencem, mas deixam em nós odores únicos...
…há dias cruzei-me por aqui com alguém a quem senti sem cheiro, algo raro, senti-me confusa, porque eu "farejo" o humano...
...o meu faro quase canino estava a atraiçoar-me...reconheço que eu sim tinha anulado esse sentir, recusava o cheiro de alguém a quem queria tornar inexistente...existe, sinto-lhe um aroma que inventei no meu laboratório de alquimista, onde tantas vezes misturei em balão de ensaio ,essências que queria ter em cheiro de felicidade…sinto-o o perfume perfeito no imperfeito de todos nós…
Gosto do teu cheiro!!!!...cheiras-me a mim!!!!
Beijo-te cheirosamente

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